Reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO desde 1997, São Luís tem na arte e nos artistas grandes expoentes da força e da permanência de suas manifestações. Mesmo com o passar do tempo e as mudanças da cidade, é dever do Poder Público preservar as peças que mantém vivos os legados e a memória de quem já se foi, mas nem sempre é o que acontece.
Com isso em mente, um grupo de artistas afirma que a própria gestão do município é responsável por um caso de desrespeito e violação ao patrimônio de Péricles Rocha, renomado artista plástico maranhense falecido em 2023. Eles alegam que uma intervenção recente da Prefeitura de São Luís configura “um verdadeiro crime de lesa-memória” e apresentaram uma Notícia de Fato ao Ministério Público do Estado do Maranhão (MPMA).
A denúncia relatada no documento trata de uma obra anunciada nas redes sociais da prefeitura e do prefeito Eduardo Braide na noite da última quarta-feira (30). O vídeo divulgado mostra a aplicação de pastilhas e revestimentos para a revitalização da parte interna do Elevado Newton Bello, mais conhecido como Elevado da Cohab, na Avenida Jerônimo de Albuquerque.
A proposta é transformar as paredes em um mosaico e faz parte do programa Colorindo São Luís. O projeto visa revitalizar estruturas públicas de toda a cidade, mas nesse caso, foi ignorado que já havia no local uma oportunidade de reavivar tanto a estrutura quanto a própria arte ali presente.
Em 2001, foi inaugurado no elevado um mural feito por Péricles Rocha com elementos do ecossistema marinho da capital maranhense. Por ter sido feita a partir de uma técnica de baixo-relevo, a obra poderia permanecer em evidência por muitos anos com manutenções pontuais. No entanto, o artista plástico e grafiteiro Gil Leros opina que isso foi ignorado para privilegiar intenções políticas.
“Não é sobre não ter reforma, é sobre reformar com responsabilidade e que não seja uma obra eleitoreira com única intenção de pôr as cores da identidade visual da atual gestão. Nossa questão é sobre o abandono e a destruição do patrimônio artístico da cidade”, explica o artista
Notificação do MPMA
Gil faz parte de um grupo que foi formado espontaneamente. Segundo o artista, já são cerca de 30 artistas que também receberam apoio de outras pessoas de vários segmentos, como professores e advogados. Na manhã da última quinta-feira (31), o coletivo protocolou junto ao MPMA a Notícia de Fato que chama a conduta do prefeito Eduardo Braide de “atentatória”.

(Trecho da Notícia de Fato enviada ao MPMA. Foto: Reprodução)
Em outro momento, o texto alega que a obra foi “sumariamente encoberta por pastilhas e revestimentos padronizados, coincidentes com a identidade visual da atual gestão municipal”, com ênfase no contexto de que não houve “qualquer consulta prévia à sociedade civil, aos órgãos de preservação, ou mesmo às entidades culturais” para a adoção da medida.
A advogada Anna Graziella Neiva, que está apoiando juridicamente a iniciativa, aponta que não foi encontrado nenhum dado sobre quem está executando a obra no portal da transparência da prefeitura. Dessa forma, ela elencou os principais pontos do documento enviado ao órgão fiscalizador, detalhados abaixo:
- Patrimônio cultural: O documento cita a violação ao artigo 216 da Constituição Federal, que estabelece a proteção do patrimônio cultural brasileiro, e à Lei 9.605/98, que tipifica como crime a destruição de bem especialmente protegido.
- Direitos autorais: A cobertura da obra configura violação aos direitos morais do artista previstos na Lei 9.610/98, especialmente o direito à integridade da obra. Como Péricles Rocha já faleceu, esses direitos passaram aos seus herdeiros, que não foram consultados.
- Improbidade administrativa: Os denunciantes apontam violação aos princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade administrativa, previstos na Lei 14.230/21, que alterou a Lei 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa.
- Falta de transparência: A suposta ausência de informações no Portal da Transparência sobre a contratação da empresa responsável pela intervenção urbana pode configurar violação aos princípios constitucionais da publicidade e transparência.
A advogada diz ainda que a obra não trata de nenhum problema estrutural do elevado e expressa indignação com o caso. “É lamentável tudo isso! Especialmente quando percebemos que estruturalmente não se vê atuação”, diz ela.
Neiva também coleciona obras de artistas maranhenses, como o próprio Péricles Rocha, de quem também era amiga, e reitera a importância da defesa dos artistas e das obras do estado:
“O objetivo efetivo é criar em todos, especialmente nas autoridades, a necessidade de respeitar e preservar a nossa arte.”
Manutenção do legado
Outro ponto levantado pelos integrantes da denúncia é a diminuição da presença artística no espaço urbano. Na visão de Gil Leros, a população tem ficado à mercê de muitas peças publicitárias e propagandas em detrimento de monumentos históricos, artísticos e culturais pertencentes à identidade maranhense:
“Isso faz com que haja um esvaziamento do orgulho maranhense, faz com que haja um esvaziamento da nossa noção, da nossa importância cultural, das nossas identidades culturais dentro desse aspecto da cidade, que é extremamente importante.”
O artista aproveita a manifestação para exaltar as contribuições de Péricles Rocha. Natural de Codó, ele morreu em 2023 aos 76 anos por complicações de diabetes. Apesar disso, seu legado construído no Maranhão e no mundo por meio da expressão e da técnica seguem como uma inspiração.
Recentemente, Glenda Rocha, escritora, advogada e filha de Péricles, fundou o Instituto Péricles Rocha, dedicado a projetos voltados para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Instalado em Alcântara e em Brasília, a organização ainda está dando os primeiros passos, mas já realiza projetos como musicalização e entregas de doações.

Segundo Glenda, a cobertura da obra de seu pai ignora as contribuições do artista na projeção do Maranhão para o mundo, com peças que hoje ocupam museus em diferentes países e órgãos públicos notórios como o Senado Federal. Na visão de presidente do Instituto Péricles Rocha, a atitude da gestão municipal não condiz com o que se espera de representantes da população.
“A nosso entendimento, a Prefeitura de São Luís jamais poderia ter tido a iniciativa de promover a erradicação histórica, mas sim os cuidados que a sociedade espera pela manutenção, revitalização e restauração dos monumentos culturais da cidade, pressuposto mínimo para o que foi eleito, inclusive o de cuidar do povo e sua cultura histórica.”
O Portal Difusora News questionou a prefeitura a respeito de um posicionamento diante do caso e da ação protocolada no MPMA, mas não obteve retorno.
